«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Com um fogo lilás apontado ao coração

Devemos prestar atenção aos livros em saldo, aqueles que pouca gente quis. Marca de Água, de Joseph Brodsky, por exemplo, é um clássico dos saldos, e também um dos mais belos livros alguma vez escritos. Sempre que o vejo nessas condições, sofro fisicamente. Luto com a vontade de o distribuir na rua.
O primeiro livro de Sándor Márai que realmente me impressionou custou 2.50 euros. Intitula-se A Conversa de Bolzano (Teorema) e é um dos textos mais intensos que me lembro de ter lido. Até reli, depois disso, As Velas Ardem até ao Fim (D. Quixote), de que não tinha gostado assim muito, apesar dos elogios da crítica.
Passei, desde então, a ler fielmente tudo o que encontro de Sándor Márai. Entretanto, a D. Quixote publicou também A Herança de Eszter, que vale a pena, e, mais recentemente, A Mulher Certa, que tem uma capa horrível e 418 páginas, mas não deve ser remetido ao esquecimento. Em francês, encontrei também Les Révoltés (Le Livre de Poche).
A Mulher Certa divide-se em quatro partes. Com a História da Hungria no séc. XX como pano de fundo, a mesma história de amor é narrada por quatro das personagens que se viram envolvidas nela, mas - característica importantíssima, a meu ver - sem delírios faulknerianos gratuitos. A intriga assenta nos mal-entendidos que cada uma destas figuras acalenta não só em relação às outras, mas também relativamente a si mesma. Nestes mal-entendidos, o estatuto social e cultural de cada uma delas assume uma importância decisiva.
Uma das características que mais me agradam em Márai tem a ver com a sua capacidade de pôr a nu a ferocidade das personagens através de confrontos verbais que frequentemente tomam a forma de monólogos. Todas estas personagens são capazes de articular e defender veementemente a sua perspectiva da verdade, como se a sua sobrevivência dependesse disso, sem, no entanto, qualquer destas versões poder ser considerada definitiva pelo leitor, apesar da sinceridade e do fervor de todas elas. A noção de que é muito pouco aquilo que na realidade conseguimos perceber uns dos outros é, neste contexto, muito importante.
Como o título indica, neste livro, a questão da possibilidade de existir a «pessoa certa» para alguém é bastante explorada. Algumas personagens começam por acreditar que existe a «pessoa certa», para depois renegarem essa possibilidade. Outras vêem-se obrigadas a aceitar o conceito, apesar de à partida o terem considerado inválido.
Há também um passo sobre luvas muito interessante.

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