«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

sexta-feira, 9 de maio de 2008

H is for Hitchcock

O adjectivo «idílico» é frequentemente usado em referência ao trabalho de Susan Homer. Os comentadores gostam de falar da sua visão idealizada do mundo e da vida doméstica.
Por mim, não capto necessariamente harmonia nas telas desta artista. Nos passarinhos que segundo alguns suscitam empatia da parte do observador vejo apenas um elemento disruptivo e até um pouco ameaçador. Desde quando costumam os pássaros tomar chá?


A improvável relação entre pássaros e chávenas está presente tanto no conto «The Birds», como no filme com o mesmo título que Hitchcock realizou a partir do texto de Daphne du Maurier.
Numa das sequências mais belas do filme, depois do ataque de pássaros na festa de anos de uma criança, tem lugar um novo ataque, desta vez dentro de casa. Acontece repentinamente, logo depois de uma das personagens reparar numa amorosa avezita saltitando junto à lareira.

Apesar de esta visita lhe causar alguma estranheza, a personagem não tem tempo sequer para a manifestar. Descendo pela chaminé, uma nuvem de pássaros invade a sala, cercando e atacando com violência todos os seres humanos que se encontram lá.
Depois do ataque, a dona da casa tenta devolver a ordem à habitação, recolhendo com muito cuidado todos os fragmentos das chávenas, um a um.

No dia seguinte, a mesma personagem tem de visitar um vizinho. Como ninguém lhe responde quando bate à porta, decide avançar. Antes de percorrer um corredor longo e sombrio para encontrar aquele que procurava morto e de olhos vazados por pássaros, descobre o primeiro índice da desordem em que os pássaros deixaram a casa na cozinha, logo à entrada.


No conto de Daphne du Maurier, a visão das chávenas e a arrumação da cozinha ajudam o protagonista a acalmar-se depois do combate nocturno com os pássaros que tinham invadido o quarto dos filhos The sight of the kitchen reassured him. The cups and saucers, neatly stacked upon the dresser, the table and chairs, his wife’s roll of knitting on her basket chair, the children’s toys in a corner cupboard).
Tanto no texto como no filme, as chávenas funcionam como elemento associado ao humano, e os pássaros como elemento que introduz o caos, revelando a ausência de racionalidade e de sentido no universo.
Um dos passos mais inesquecíveis do conto tem a ver com o primeiro confronto do protagonista com esta força inumana incompreensível e incomensurável, ao ponto de diluir as coordenadas espácio-temporais:


«How long he fought with them in the darkness he could not tell, but at last the beating of the wings about him lessened and then withdrew, and through the density of the blanket he was aware of light. He waited, listened; there was no sound except the fretful crying of one of the children from the bedroom beyond. The fluttering, the whirring of the wings had ceased.»

Há qualquer coisa neste passo da luta entre Jacob e o Anjo.

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