«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Hotel


 
Paulo Varela Gomes. 2014. Hotel. Lisboa: Tinta-da-China.

 

Nos últimos anos, Paulo Varela Gomes (n. 1952, especialista em História da Arquitectura e da Arte) publicou os romances O Verão de 2012 (2014), Hotel (2014), Era Uma Vez em Goa (2015), assim como o livro de crónicas Ouro e Cinza (2014). Aproveitamos a atribuição do prémio PEN Narrativa 2015 a Hotel para recuperar este excelente romance e reflectir um pouco sobre o autor.

 

No cerne de Hotel está a ideia de que as pessoas, o espaço e a sociedade funcionam como uma espécie de hipertexto ou ponto de entrecruzamento de várias referências históricas e culturais. O protagonista (Joaquim Heliodoro), o espaço principal do romance e as suas histórias representam este cruzamento de referências, num livro inteligente e divertido que concretiza a ideia de que as vidas e as histórias das personagens são indissociáveis de tudo o que as rodeia do ponto de vista material (espaço, objectos, outras pessoas) e cultural (livros, filmes, internet). Neste romance nenhum elemento pode ser compreendido sem apelo a uma vasta rede de informações, ainda que estas informações não se revelem suficientes para assegurar tal compreensão.

 

A descrição de hipertexto – «aquele dispositivo que a internet reinventou e aperfeiçoou através do qual quase todos os conceitos e nomes presentes num texto remetem para outros nomes e conceitos, e assim sucessivamente, numa teia infinita ao longo da qual o sentido se perde definitivamente» (p. 169) – é explicitamente relacionada com os gabinetes de curiosidades do Renascimento e com as notas de rodapé dos ensaios académicos. De acordo com o narrador de Hotel, o circuito de remissões de uma coisa para outra partilhado pelo hipertexto e pelos gabinetes de curiosidades traduz um mecanismo universal da percepção humana.

 

O espaço principal do romance, o hotel que o protagonista, depois de «ganhar o euromilhões», remodelou de acordo com os seus caprichos pessoais e com as teorias que desenvolveu a partir de inúmeras estadias em hotéis de todo o mundo, representa o mesmo entrecruzamento de caminhos: «Lembrou-se de que praticamente nenhum dos muitos aposentos e espaços do hotel tinha apenas uma porta de acesso ou saída, todos pareciam, quando neles se entrava, o início de um percurso» (p. 166).

 

Tal como o espaço que habita e que recriou, visitado por várias personagens peculiares, o próprio protagonista é descrito por outras personagens através de um conjunto de referências culturais entrecruzadas: «uma pessoa do final do século XVIII, vestida à maneira do século XIX e teleportada para o século XX […] Margareta retorquiu que do século XVIII Joaquim Heliodoro só teria o lado mais ferozmente realista, a libertinagem, mas tudo o resto lhe parecia resultar da auto-repressão empertigada da sociedade burguesa triunfante» (p. 165).

 

À semelhança da arquitectura do hotel em que se desenrola, não só a arquitectura do romance é deliberadamente visível e exposta, como quer a própria intriga, quer a  densidade do protagonista, dependem da revelação gradual desta visibilidade. A arquitectura do romance é exibida através da integração de citações, digressões de tom ensaístico, transcrições de livros pornográficos, referências a lendas ou outras manifestações de cultura popular e até, no capítulo intitulado «Desencontros e conjugações» (pp. 219-229), da divisão da narração em três colunas por página.

 

A ideia da relação estreita entre a mente humana e o espaço articula-se com o voyeurismo, o outro tema importante do romance. O narrador explica: «a escopofilia, diferentemente de outras orientações sexuais, resulta directamente das características do espaço que separa o olhador do objecto olhado, do modo como a luz ilumina certos lugares e se afasta de outros, das dimensões e disposições dos vãos e aberturas, dos caminhos que se percorrem (as passagens) até ao lugar do olhar, os corredores desertos, as salas silenciosas, quer dizer, a escopofilia é uma pulsão arquitectónica e arquitectada, a ponto de o lugar (como temos vindo a verificar no hotel de Joaquim Heliodoro) adquirir uma intensidade erótica que subsiste muito para além do olhar, a ponto de o lugar poder substituir o próprio objecto do olhar e ser a cena que, mesmo vazia, provoca o desejo» (p. 112).

 

Em Hotel, o autor e o protagonista podem ser descritos como arquitectos de desejos que envolvem nas suas construções tanto os leitores como as personagens. As observações sobre o voyeurismo são observações sobre a leitura. O voyeurismo das personagens vai-se confundindo com o voyeurismo dos leitores. A arquitectura do hotel torna-se indistinta da arquitectura do livro; ambos dependem da interacção – com os hóspedes e os leitores: «acabada a obra, Joaquim Heliodoro compreendia que a vida do hotel enquanto obra de arte dependia agora dos hóspedes, a poesia com que esta obra o embalara ao pensá-la e ao construí-la provinha daquilo que os hóspedes lhe contassem, dos sítios por onde passassem ou se detivessem a ler ou a devanear, das emoções que pudessem experimentar, da alegria com que regressassem e da melancolia com que se despedissem» (p. 153).

 

Talvez o elemento menos conseguido de Hotel se deva à circunstância de todas as personagens funcionarem como notas do rodapé do protagonista, ele próprio um assumido apreciador deste tipo de comentário. Sem densidade, aparecem como simples presenças, desligadas do seu presente e do seu futuro, como se reconhece perto do fim do romance a propósito de Manuela, o par ficcional do protagonista. Contudo, mesmo esta falta de densidade das personagens secundárias concretiza a ideia principal do romance: todos somos lugares de passagem (tópico que, aliás, será desenvolvido no próximo romance do autor, intitulado precisamente Passos Perdidos). 

 

Pelo sentido de humor, pelo cosmopolitismo invulgar das suas personagens, pela diversidade das referências culturais que consegue articular sem pretensiosismos nem exibição gratuita de erudição, pela capacidade de explorar uma zona intermédia entre o romance e o ensaio em que as referências culturais estão ao serviço da narrativa em vez de a desequilibrar, pelo facto de nos recordar que a vida e as actividades de ler, escrever ver filmes, viajar e pensar podem ser muito mais interessantes quando são indissociáveis, Paulo Varela Gomes ocupa um lugar único na literatura portuguesa contemporânea.


 

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